Prólogo
Quando cheguei a Ekhaya pela primeira vez, tentei entender sua lógica. Busquei padrões, regras e sistemas que pudessem explicar como este lugar funciona. Mas logo percebi que não se trata de algo a ser compreendido com a mente desperta. A magia em Ekhaya não é um conceito, uma força externa ou uma ferramenta a ser manipulada. Ela é a própria essência deste reino e de seus habitantes.
Os nativos não a usam como eu tentei, de forma consciente e deliberada. Para eles, a magia é como respirar, um fluxo natural que percorre seu ser e o ambiente ao redor. Vi um deles, um menino de olhos dourados como o sol poente, atravessar um campo de névoa e, com um simples suspiro, transformar o nevoeiro em um mar de flores azuis. Ele não fez gestos grandiosos, não entoou encantamentos. Ele apenas foi e a magia respondeu.
Eu, no entanto, precisei aprender. Precisei despertar. Para um Andarilho, a magia se revela lentamente, como o reflexo de um lago que só se torna nítido quando as águas se acalmam. No início, meus pensamentos interferiam, minhas dúvidas criavam barreiras. Mas Ekhaya exige mais do que raciocínio. Ele pede entrega.
Foi apenas quando permiti que minhas emoções fluíssem, sem medo de me perder nelas, que compreendi. Lembrei-me de um dia específico, em que a dor de uma memória que eu evitava se manifestou como uma tempestade ao meu redor. O vento uivava, a chuva caía em fúria e então, ao aceitar aquela dor, o céu clareou. Meu corpo ainda estava ali, mas era como se algo dentro de mim tivesse se expandido, se conectado ao próprio tecido de Ekhaya. Eu não invoquei a tempestade. Eu era a tempestade.
A fonte de todo esse poder é a essência de Nammu, o coração pulsante de Ekhaya. Sua energia é moldada pelos sonhos e pesadelos daqueles que habitam o mundo desperto. E, assim como as marés, a magia oscila quando os sonhos são abundantes, Ekhaya floresce. Quando os pesadelos se tornam dominantes, a escuridão se espalha. Foi assim que descobri Tormenta, a força que se alimenta do medo e da dor, distorcendo a magia deste mundo e corrompendo tudo o que toca.
Mas há um preço para tudo. Soube de Andarilhos que se perderam nesse mundo, suas almas fragmentadas pelo uso excessivo da magia, incapazes de despertar novamente no mundo real. Eles se tornaram ecos, sombras errantes presas entre os véus dos sonhos. E vi nativos que abusaram de seu poder, drenando a própria essência do reino, deixando para trás ruínas onde antes havia vida.
Agora entendo que a magia de Ekhaya não é algo a ser dominado, mas algo com que se deve dançar. Um equilíbrio constante entre entrega e controle, entre desejo e aceitação. É um espelho da alma, e apenas aqueles que se permitem enxergar verdadeiramente a si mesmos podem tocar seu verdadeiro potencial.
Eu ainda sou uma aprendiz. Mas cada dia, ou seja lá o que for o tempo aqui, me ensina mais.
Ekhaya respira. E eu respiro com ele.
Helena, Andarilha dos Sonhos
Livro I - Larissa
Dezembro 2024
Fazia poucas semanas que Isabela se fora, e o silêncio que ela deixou parecia morar em tudo. A casa dela, antes cheia de cheiro de café e pão de queijo, agora era um monumento ao vazio.
Larissa passava por ali de cabeça baixa, sempre apressando o passo. Não era medo de fantasmas, era pior. Era medo de encontrar Thomas, de ver aquele homem com o olhar quebrado e não saber o que dizer. “Sinto muito” nunca parece o suficiente.
O vento da tarde bagunçava os cabelos negros de Larissa, longos, lisos, daqueles que pareciam ter vontade própria. Um fio insistia em cair sobre o rosto, e ela o afastava com impaciência. Um gesto que repetia desde criança. Tinha olhos escuros e oblíquos, herdados da mãe, sempre atentos, mesmo quando ela fingia desinteresse. A pele morena dourada carregava o sol da praia onde crescera, e o jeito de andar, com passos firmes e ombros retos, denunciava alguém que não gostava de parecer frágil, mesmo quando estava em pedaços.
O sol já estava se pondo, e o vento trazia aquele cheiro salgado que grudava na pele.
Ela chutava a areia, distraída, tentando não pensar em nada.
Pensar era sempre o caminho mais rápido pra se perder.
— Se ao menos Helena estivesse por aqui — murmurou.
Ela tinha aquele jeito de enxergar tudo com curiosidade genuína. Nem um dragão no quintal faria ela piscar duas vezes — só perguntaria, meio assustada, meio fascinada: — E como foi isso? Me conta tudo.
Mas Helena não estava ali. E Larissa estava sozinha com o mar.
A praia estava quase deserta, o que pra ela era um bônus. Moradores idosos dormindo cedo, jovens sumidos, e ela com o privilégio de ter o barulho das ondas só pra si.
Gostava daquilo: a solidão tinha um som bom quando vinha do mar.
Caminhou até que a água molhasse os tornozelos. O frio fez arrepiar, mas o incômodo também era bem-vindo, lembrava que ela ainda estava viva.
O céu era uma pintura absurda, e mesmo tentando não se render, ela acabou sorrindo.
— Tá lindo demais… droga.
Foi quando ouviu.
Um som grave, distante, como um canto. Virou-se, o coração acelerando, mas só havia oceano. Deu alguns passos, achando que fosse imaginação.
Mas o som veio de novo. Mais alto, mais perto.
E então ela viu.
Uma sombra colossal rompeu a superfície da água. Uma baleia — ou o que parecia uma. Enorme, impossível, brilhando por dentro como se o próprio mar tivesse criado um espírito pra impressionar quem ainda duvida de milagres.
Larissa ficou boquiaberta, com um riso nervoso escapando.
— Tá. Certo. Uma baleia em água rasa. Claro. Totalmente normal.
Piscou várias vezes.
A criatura mergulhou e sumiu, como se nunca tivesse existido.
Ela olhou ao redor…nada. Nenhuma alma viva.
— Ótimo. Comecei a ver coisas. A próxima etapa é conversar com elas.”
Mas havia algo… um chamado silencioso, uma coceira no fundo da alma.
O tipo de sensação que faz a gente querer correr, mas também ficar.
Antes que percebesse, estava andando em direção à água.
— Larissa, não faz isso — Murmurou para si mesma.
E lá foi ela fazendo.
Correu.
O mar a engoliu num só golpe.
A primeira coisa que sentiu foi o peso. Um peso absurdo, que esmagava cada músculo.
Tentou nadar — nada.
O corpo afundava como se o oceano quisesse guardá-la pra si.
O ar queimava no peito, e o instinto gritava pra lutar.
— Não agora! Eu ainda tenho que terminar meu TCC!
Debateu-se, chutou, moveu os braços, qualquer coisa. E no meio do desespero, uma lembrança de Isabela surgiu — o jeito calmo como ela dizia: ‘Você é teimosa, menina. E ainda bem.’
Foi aí que a teimosia venceu.
Em vez de afundar, ela parou.
Como se o mar tivesse desistido de puxá-la.
Abriu os olhos e viu — lá embaixo, um brilho fraco, pulsante.
Uma gruta.
— Claro. Uma gruta. No fundo do oceano. O que pode dar errado?
Puxou o último fôlego imaginário e nadou até lá.
A entrada era apertada, e cada movimento doía, mas a curiosidade era mais forte que o medo.
Dentro, o breu parecia vivo, respirando com ela.
Então pequenas luzes começaram a surgir — primeiro tímidas, depois intensas.
Corais azuis, como pequenas estrelas presas à rocha, pulsando junto com o batimento do próprio oceano.
Larissa parou por um segundo, assombrada.
— Ok. Isso é… lindo. E definitivamente perigoso. Mas lindo.
Avançou.
E então viu.
Uma porta. De madeira, coberta de algas e símbolos gastos.
Parecia saída de um sonho — ou de um pesadelo muito bem produzido.
Diante dela, uma pequena figura.
Usava um poncho vermelho, uma máscara branca de expressão vazia, e tocava uma flauta que não encostava nos lábios.
Larissa piscou.
— Certo. Agora o fundo do mar tem cosplay de teatro japonês. Por que não?
A criatura virou o rosto na direção dela.
Parou de tocar e acenou, chamando-a.
Ela deveria ter sentido medo.
Mas o medo já estava cansado.
E a curiosidade, viva.
— Tá bom. Bora ver até onde vai essa maluquice.
Nadou até a porta e atravessou.
O choque foi imediato — o corpo emergiu, leve, e ela estava de pé sobre uma colina.
Descalça. Grama fria, vento quente.
O céu… não, o céu não — aquilo era outra coisa. Um palco de planetas próximos, rios de luz, e uma lua gigante que parecia respirar.
Larissa respirou fundo, tentando achar palavras.
— Ok… definitivamente não estou mais no litoral paulista.
O vento sussurrou pelas flores ao redor, e ela quase sentiu o mundo observando.
A beleza era absurda, impossível, mas real o suficiente pra fazer o coração disparar.
Não era medo. Era como se algo dentro dela — algo adormecido há muito tempo — finalmente tivesse acordado.
Ela olhou o horizonte, sorriu de leve e murmurou:
— Se isso for um sonho, que demore pra acabar.
E deu o primeiro passo.
O primeiro passo foi estranho. Não era caminhar, nem flutuar, nem cair — era algo no meio disso tudo, com a sensação de que cada músculo do corpo precisava se reajustar o tempo todo. Larissa pigarreou, tentando se convencer: “Certo. Estou viva. Provavelmente.”
A grama fria se espalhava sob os pés, e o vento quente arranhava suavemente os braços. Ela levantou a cabeça devagar. O Umzingeli continuava ali, imóvel, olhando para ela com atenção silenciosa. A pequena figura, antes uma nota de surrealidade, agora parecia estar no centro do mundo — e o mundo parecia reconhecê-la ali.
Larissa respirou fundo, sentindo o coração disparar. O silêncio era quase palpável, quebrado apenas pelo sussurro do vento entre as flores. Era o tipo de presença que obrigava a gente a se concentrar em cada detalhe: o movimento do poncho vermelho, o leve inclinar da cabeça, a ausência de expressão na máscara que, ainda assim, transmitia algo.
— Você é… — disse, a voz quase um sussurro, hesitante. — Quem exatamente?
Umzingeli inclinou a cabeça levemente, como quem observa algo que já esperava, e manteve o olhar fixo nela. Larissa sentiu um arrepio, não de medo, mas de expectativa, como se algo que ela nem sabia que estava adormecido tivesse despertado.
— Não sou um “quem” comum, minha Jovem. Sou eco, sombra e sopro do que já foi. Estou aqui para te lembrar de algo que você sempre soube, mas esqueceu.
A visitante da colina sentiu um arrepio percorrer sua espinha. A presença da criatura era intensa, mas não ameaçadora; havia um cuidado estranho em cada gesto. Ela deu um passo à frente, aproximando-se lentamente.
— E o que eu devo lembrar? — perguntou, tentando manter a voz firme.
O estranho mascarado ergueu a mão e apontou para o horizonte. A brisa carregava o aroma salgado do mar e o som distante das ondas parecia dançar entre eles.
— Nem tudo que você procura está no que vê. Às vezes, menina, é no silêncio, no toque da brisa, no ritmo do seu próprio coração que se encontram as respostas.
Ele gesticulou suavemente, e o vento pareceu formar padrões no ar, quase como se falasse em línguas antigas. Larissa sentiu que algo dentro dela começava a despertar: memórias difusas, sonhos esquecidos, sensações que acreditava ter perdido para sempre.
— Eu… sinto algo, mas não consigo entender — murmurou.
— E não precisa entender agora — respondeu o flautista. — Apenas sinta. A chama que habita em você não se revela em palavras, mas em experiências. O que você sente, tolinha, é apenas o começo.
Ela respirou fundo, fechando os olhos por um instante. Quando os abriu, a paisagem parecia mais vívida, pulsante, como se a própria colina estivesse viva e consciente da sua presença. O vento acariciava seu rosto, e por um momento ela sentiu que podia ouvir sussurros antigos, ecos de histórias que ninguém mais contava.
— Então… tudo isso é um teste? — perguntou, meio incrédula, meio fascinada.
— Não um teste, mas um convite — disse a criatura. — Cada passo que você dá aqui revela algo que a vida real ainda não mostrou. Cada escolha, cada gesto, cada entrega, te aproxima de quem você realmente é.
Larissa estendeu a mão, hesitante, e Umzingeli fez o mesmo. Quando seus dedos se tocaram, uma onda de energia percorreu seu corpo, não de forma dolorosa, mas como se a própria essência do lugar a estivesse abraçando.
— Então… eu devo confiar? — perguntou, com a voz baixa.
— Sim. Confie no vento, na maré, no sopro que move o mundo e também você. O resto, Andarilha, se revelará no tempo certo.
Ela respirou fundo, sentindo um misto de medo e curiosidade, mas também uma estranha paz. Com um último olhar para a colina, a amiga mais velha de Helena reuniu toda a sua coragem e decidiu seguir Umzingeli. Não sabia aonde aquilo a levaria, mas pela primeira vez em muito tempo sentiu uma excitação intensa, daquelas que fazem o coração disparar segundos antes de encarar uma montanha-russa pela primeira vez.
Larissa deu o primeiro passo. O som das cigarras cessou, como se o próprio mundo prendesse a respiração.
Umzingeli se adiantou, e Larissa o seguiu colina abaixo, até que o solo começou a mudar sob seus pés. A relva se tornou um emaranhado de névoa espessa que ondulava como água viva. A paisagem parecia se curvar, distorcendo-se em torno deles, e o horizonte foi engolido por um brilho cinzento.
O Kabu ergueu o bastão, e o ar vibrou em resposta. Um corte fino, como uma fenda de luz, abriu-se diante deles, não no céu nem na terra, mas entre ambos.
A jovem sentiu o coração acelerar. O vento cessou.
Umzingeli apenas disse:
— Não tema. As Brechas não se abrem para o medo, mas para o que ousa atravessar.
E antes que pudesse pensar em recuar, ele atravessou. A fenda pulsou, convidando-a, e ela seguiu. Sentindo um arrepio subir pela espinha, como se deixasse parte de si para trás.
O chão sob seus pés já não parecia chão. Era como pisar em um sonho espesso, onde cada passo afundava levemente, deixando rastros de luz que se dissipavam logo em seguida. O ar mudara…pesado e frio, mas impregnado de um perfume doce, quase antigo.
Larissa olhou em volta. Não havia colinas, nem ventos, nem horizontes — apenas um véu negro pontilhado de cintilações tênues, como se o próprio espaço respirasse.
Umzingeli caminhava à frente, o corpo dele oscilando entre sombra e forma. A cada movimento, algo nele se desmanchava e se refazia — como se a Brecha testasse a solidez do que era real.
— Onde estamos? — sussurrou ela.
— Em um intervalo — respondeu a criatura, sem se virar. — Aqui, o mundo dorme e sonha com o que foi e o que ainda pode ser.
O silêncio a envolveu por completo. Larissa sentiu o coração acelerar, mas não de medo — era como se uma presença invisível a observasse, esperando que ela dissesse algo, qualquer coisa, para confirmar que ainda existia.
Umzingeli estendeu o braço e um portal começou a se formar, girando em espirais lentas, feito água em gravidade zero. No reflexo líquido, Larissa viu brevemente o próprio rosto, mas não o reconheceu.
Os cabelos negros e lisos, desgrenhados pelo vento, pareciam se mover com vida própria sob a luz azulada da fenda. As feições finas, de traços orientais herdados da mãe, ganhavam uma delicadeza quase sobrenatural naquele brilho instável. A pele, antes aquecida pelo sol de Quimera, assumia um tom translúcido, como se a própria luz a tocasse por dentro.
Seus olhos, antes escuros, agora cintilavam com uma luz dourada que nunca tiver.
— Depois daqui, não haverá retorno — disse ele. — O que cruzar com você seguirá desperto.
Ela engoliu em seco, sentindo que o ar rareava.
— E você? — perguntou. — Vai comigo?
Umzingeli hesitou por um instante — e foi o suficiente para ela perceber o peso na voz dele quando respondeu:
— Não onde você vai. Mas estarei perto... até que o vento leve o meu nome de volta a quem o concedeu.
O portal pulsou, chamando-a. Larissa fechou os olhos e deu o passo.
Por um breve segundo, tudo se dissolveu: corpo, som, medo. E o mundo se refez em um sussurro.
O despertar começaria ali.
?????
Livro II - Helena
Janeiro 2025
Desde a morte de sua avó, Helena buscava evitar o mundo onírico de Turiya. Já fazia quatro meses desde sua última conexão, e ela começava a acreditar que poderia se desligar de vez. A viagem para a Praia do Vento com Júlia e seus pais parecia a oportunidade perfeita para reforçar essa distância. Lá, em um canto isolado da costa, ela esperava apenas dias tranquilos, rodeada pelos seus amigos, com o som do mar e o calor do sol de janeiro para distrair a mente.
A praia era um cenário de sonho. Areias douradas, águas cristalinas e uma brisa constante que parecia levar consigo qualquer preocupação. Helena, Júlia e seus outros amigos, Caio, Arthur e Sofia, decidiram começar o dia com uma caminhada para conversarem longe dos olhos e ouvidos dos pais da anfitriã. Após alguns minutos caminhando todos juntos, Sofia, Caio e Arthur acabaram se distanciando, ávidos para encontrar um lugar mais tranquilo, deixando Helena e Júlia para trás.
— Você está muito quieta, Helena — observou Júlia enquanto caminhavam pela costa.
Helena deu de ombros — Acho que ainda estou me adaptando. É estranho não ter nada para resolver.
Júlia sorriu, tentando aliviar a tensão — Talvez resolver nada seja exatamente o que você precisa agora.
— Talvez — Respondeu sem muita convicção.
— Vamos aproveitar esse dia lindo com o pessoal e em breve eu prometo que as coisas vão melhorar. — Júlia deu uma piscadela travessa e correu ao encontro dos outros que se divertiam sem elas.
*
Mais tarde, cansados de tanto andar, o grupo decidiu se acomodar em uma enseada isolada para nadar. Ela era relativamente deserta por causa do difícil acesso, tornando o local preferido de Helena e Júlia.
Helena, conhecida por sua habilidade como nadadora, foi a primeira a entrar na água, enquanto os outros brincavam na borda. Ela mergulhou profundamente, saboreando o silêncio submerso, mas algo parecia diferente. Como se algo que não deveria estar ali, insistisse em existir. Havia uma familiaridade incômoda na textura fria da água. Quando Helena voltou à superfície, o mundo ao redor parecia ter mudado sutilmente. As vozes de seus amigos ficaram distantes, como se tivessem sido abafadas por uma parede invisível. Sentindo-se confusa, ela mergulhou novamente — e foi quando tudo mudou.
Helena emergiu em uma praia envolta em névoa, onde o ar parecia denso e carregado. O lugar era inquietantemente familiar, mas ela não conseguia conectar as peças de imediato. A areia sob seus pés parecia se mover como serpentes invisíveis, e o som do mar era abafado, como se viesse de muito longe.
— Helena — A voz ecoou novamente, suave e sedutora, cortando o silêncio opressivo.
Ela girou o corpo, procurando a origem do som. A figura surgiu devagar, como se fosse moldada pela própria névoa. Era um homem de aparência indefinida, com olhos que pareciam dançar entre as estrelas e o abismo. Seu sorriso era convidativo, mas havia algo nele que fazia os instintos de Helena gritarem alerta.
— Quem é você? — indagou Helena.
— Alguém que pode te dar o que procura — respondeu ele, a voz soando próxima demais, mesmo que ele estivesse a vários metros. — Você tem perguntas, não tem? — Sobre o que aconteceu, sobre o que virá e sobre ela.
— Ela quem?
Ele não respondeu imediatamente. Com um movimento quase casual, ergueu a mão, e a névoa ao redor começou a dissipar. Aos poucos, uma visão se formou: um campo florido, com uma casa simples ao fundo. No alpendre, balançando em uma cadeira, estava Isabela.
Helena sentiu o chão tremer sob seus pés. — Isso… isso não é real.
— Por que não seria? — perguntou ele, dando um passo à frente. — Aqui, neste lugar, os limites do possível não existem. Tudo o que deseja, tudo o que perdeu, pode ser seu novamente. É simples, Helena. Basta aceitar minha ajuda.
— Ajuda? — Ela deu um passo para trás. — Por que alguém como você estaria tão disposto a me ajudar?
Ele inclinou a cabeça, o sorriso nunca deixando seus lábios. — Porque vejo potencial em você. Uma conexão rara, especial. Turiya escolheu você, Helena, mas ainda assim você a rejeita na sua forma mais pura. Não percebe que isso é apenas o começo? Que há muito mais esperando por você?
Helena sentiu um nó apertar sua garganta. Cada palavra dele parecia cuidadosamente escolhida, um anzol tentando fisgar suas dúvidas mais profundas. — Não preciso da sua ajuda. Sei muito bem o que sou capaz de fazer sozinha.
— Capaz? — Ele riu suavemente. — Você acha que tem controle, mas, no fundo, sabe que está perdida. Está fugindo, Helena. Desde que perdeu sua avó, tem evitado Turiya, ignorando o que realmente importa. É por isso que estou aqui. Para te mostrar que fugir não vai te levar a lugar nenhum.
— Não estou fugindo! — Helena vociferou, mas a própria força de sua voz a surpreendeu.
Ele se aproximou mais, e embora sua expressão ainda fosse calma, havia algo em seu olhar que queimava como fogo. — Você pode mentir para si mesma, mas não para mim. Você sente a ausência dela como uma ferida aberta. Ela era seu guia, sua fortaleza. Mas agora? Você está sozinha, sem rumo. E sabe o que mais? Não precisa estar.
— Pare com isso — disse a Andarilha, apertando os punhos. — Você não tem ideia do que está falando.
— Ah, mas tenho — A criatura ergueu a mão novamente, e o campo florido ao redor da casa se iluminou, mostrando Isabela mais nitidamente. Ela parecia tão real, tão viva, que Helena teve que conter um soluço. — Tudo o que precisa fazer é vir até mim, Helena. Deixe-me te mostrar o que posso fazer por você. Ela pode voltar, junto com tudo o que perdeu.
Helena deu um passo em direção à visão, mas parou, seus pés cravando-se na areia. A tentação era esmagadora, mas algo dentro dela sussurrava para resistir.
— Por que está fazendo isso? — perguntou, sua voz oscilando entre raiva e desespero.
Ele suspirou, como se sua paciência estivesse sendo testada. — Porque você é importante, Helena. E porque eu posso te dar tudo. Pense nisso: nunca mais precisar lidar com a dor, a solidão, o vazio. Não é isso que você quer?
Ela sentiu as lágrimas queimarem seus olhos, mas balançou a cabeça. — Não! Não é assim que funciona. Minha avó me ensinou que nada que vale a pena vem sem sacrifício. Você pode me mostrar essas ilusões o quanto quiser, mas nunca vai ser real.
O sorriso dele desapareceu, e sua expressão endureceu. — Você é mais teimosa do que imaginei.
— E você é mais previsível do que eu esperava — rebateu Helena, erguendo o queixo.
A praia começou a tremer, as cores ao redor desbotando. A ilusão de Isabela desapareceu como fumaça ao vento, e o rosto da figura se contorceu em algo que beirava a fúria.
— Você não sabe o que está rejeitando — a voz agora fria como gelo — Mas vai descobrir. Mais cedo ou mais tarde, Helena, você virá a mim.
A névoa ao redor se desfez em sombras, e Helena sentiu como se estivesse sendo sugada de volta por uma força irresistível.
Ela emergiu na água da enseada, tossindo e ofegando enquanto Caio a puxava para a superfície. O sal queimava em sua garganta, a luz do sol parecia agressiva depois da escuridão da névoa e o toque das mãos de Caio parecia estranho, como se ela ainda não estivesse completamente de volta. Júlia e os outros correram para ajudar, seus rostos cheios de alívio e confusão.
— Helena, o que aconteceu? Você estava se afogando! — gritou Júlia, segurando-a firmemente.
— Eu estou bem — respondeu, embora ainda sentisse o corpo tremer.
Enquanto os amigos a cercavam, Helena olhou para o horizonte. Uma figura sombria parecia desaparecer ao longe, e ela sabia que aquilo não era um sonho. A Ilha de Ankun estava mais próxima do que nunca, e o Devorador dos Sonhos não desistiria tão facilmente.
*
Os dias que se seguiram foram relativamente monótonos. A praia oferecia um refúgio para a mente inquieta de Helena que ocasionalmente era interrompido pelas lembranças de seus dias em Turiya. Ela sentia falta de estar lá, de sentir o vento gelado beijando a sua pele enquanto era desafiada por Jawari nos céus de Meru. Em seu íntimo, ela sabia que precisava voltar. Ela devia isso à sua avó, principalmente depois que aquela estranha criatura a confrontou. Em seu íntimo, Helena sabia que se tratava do Devorador. A ideia de se livrar de todo sofrimento ao abraçar toda a essência de Turiya. Ela já tinha ouvido aquilo antes e sabia onde aquele desejo poderia levar. Ela não poderia ficar inerte. Precisava agir, mas antes que seus pensamentos pudessem tomar uma direção, ela foi interrompida pelas risadas exageradas de Caio.
— E então Helena, está com fome? Os pais de Julia pediram pizza. Vamos? Vai esfriar e eu detesto queijo frio. Não sou adepto de comer borracha.
— Não seja exagerado, Caio. Eu ouvi da terceira vez que vocês me chamaram. Eu só não respondi porque estava ocupada mandando mensagem para os meus pais.
— Eles querem saber se estamos cuidando bem de você — comentou em tom de zombaria.
— Para de me encher a paciência e guarda algumas fatias de pizza pra mim. Eu já estou indo — Ela hesitou um instante — Caio, poderia pedir para Julia vir no nosso quarto?
— Seu desejo é uma ordem - O irmão gêmeo de Julia saiu a passos largos do quarto e minutos depois, sua irmã surgiu na porta com um prato e dois pedaços suculentos de pizza.
— Como sempre, eu salvando a sua pele — a amiga da Helena estendeu o braço e assim que ela o pegou, sentou ao lado dela e apenas a observou em silêncio enquanto a jovem Andarilha devorava as pizzas.
— Por isso eu te amo, Ju, mas hoje eu preciso de muito mais do que um pedaço de pizza ou da sua compreensão por ter me atrasado para a prova de história.
— Eu sabia que o seu irmão Lucas não tinha nada a ver com o seu atraso — Falou triunfante — Como a sua fada-amiga madrinha pode te ajudar?
Helena ponderou enquanto olhava nos olhos de Júlia, respirou fundo e então prosseguiu — Preciso que me deixe dormir por quanto tempo conseguir.
Julia encarou a amiga sem entender muito bem a natureza do pedido e então sorri — Lena, eu estou um pouco confusa. Você quer que eu a deixe dormir o maior tempo possível, estando em uma praia incrível com os seus melhores amigos sem os seus pais?
— Isso mesmo, Ju. Eu não conseguiria explicar o motivo, mas preciso que confie em mim. Parece loucura, mas é justamente por isso que aqui seria o melhor lugar para isso. Meus pais não deixariam que eu dormisse por tanto tempo sem interrupções.
— Você está me assustando. Helena, você está bem? Quer me contar alguma coisa? — Insiste a amiga.
— Quero, mas não é o momento. Eu prometo que te contarei, mas agora eu preciso que você me ajude. Seus pais não vão encanar com o fato da gente dormir até tarde, mas tenho receio dos meninos tentarem me acordar com algum tipo de brincadeira, por isso preciso de você.
Depois de ponderar por algum tempo, Julia finalmente dá seu veredito — Está bem, mas você tem que me prometer que irá me contar tudo que está acontecendo assim que acordar, combinado?
— Combinado, minha amiga — A jovem abraça Júlia, quase esmagando — obrigado!
Minutos depois a dupla de amigas se reuniu com o grupo e passaram uma noite agradável se entupindo de pizza e se divertindo com jogos de tabuleiros.
Na manhã seguinte, a jovem Andarilha e seus amigos saíram para explorar os arredores da praia do vento.
A exploração rendeu boas risadas, a descoberta de uma cachoeira e uma fome grande o suficiente que forçou o grupo de adolescentes a voltar em busca de algo saboroso para comer. Após um longo almoço e o convite irrecusável da mãe de Júlia para que os cinco limpassem a cozinha, eles optaram em ficar na casa, cada um ocupado com alguma coisa: Caio e Sofia que já estavam juntos fazia um ano foram assistir filme, Arthur decidiu jogar video game com Julia enquanto seus pais desfrutavam da piscina pouso usada.
Aproveitando a oportunidade, Helena foi até a amiga que estava se deliciando com a sua vitória em um jogo de luta e anunciou que iria tomar um banho e descansar um pouco. Mesmo concentrada no jogo, Júlia entendeu a mensagem e rapidamente deu uma piscada antes de voltar a sua atenção para a tela da televisão.
Bem, finalmente chegou a hora de voltar — Helena proferiu a frase mentalmente antes de subir para o quarto e se trancar na companhia do som das ondas que quebravam próximas da casa.
Helena fechou os olhos, permitindo que o silêncio do quarto se misturasse com o sussurro das ondas. Por um instante, parecia que o chamado de outro mundo ainda a envolvia, mas aos poucos a realidade voltou, suave e insistente. O cheiro de pizza recém-comida se infiltrou pelas narinas, e ao longe ela percebeu as risadas abafadas dos amigos na sala. Cada som, cada cheiro, lembrava que ela ainda estava ali, na Praia do Vento, prestes a se entregar ao descanso que tanto precisava.
O cansaço pesava sobre as pálpebras de Helena como uma maré lenta e inevitável. O colchão afundava sob seu corpo, firme, mas a cada inspiração parecia se tornar mais leve, como se a cama fosse feita de areia que escorria devagar. Um sopro quase imperceptível tocou sua mente, tão sutil que poderia ter sido apenas imaginação:
— Venha...
Aos poucos, o barulho das ondas começou a se afastar, como se alguém estivesse diminuindo o volume do mundo real. As risadas de Júlia e Caio se perderam no fundo da memória, até restar apenas o silêncio. O colchão desapareceu sob ela, dissolvendo-se em fragmentos luminosos que subiam e rodopiavam no ar. Cada fragmento trazia consigo um eco: o riso de Júlia, o olhar aflito de Caio quando a tirou da água, a voz da avó chamando seu nome.
O corpo de Helena já não era corpo, era algo translúcido, etéreo, que flutuava como se fosse feito da própria respiração. Não havia medo, apenas a estranha sensação de que tudo aquilo era inevitável.
Então veio a escuridão. Não como ausência, mas como um casulo quente, acolhedor. No meio dela, uma luz pulsava suavemente, dançando como uma estrela solitária. Helena reconheceu a melodia sem som que acompanhava aquela luz.
Um passo. Depois outro. Seus pés não tocavam nada, mas o caminho estava lá, construído pelo próprio sonho. Linhas de brilho começaram a contornar árvores colossais, rios de névoa prateada e, ao longe, a montanha Shintsha erguia-se com a majestade de sempre.
Helena abriu os olhos e soube: havia voltado.
*
Do alto da ilha flutuante, Helena contemplava a vastidão viva de Ekhaya. Ao sul, a floresta de Thalwynn se estendia como um manto esmeralda e ondulante. Logo à frente, emergia a magnífica cidade de Arcádia, com suas casas que pareciam brotar das árvores e aves iridescentes que transformavam o céu em uma obra de arte. Definitivamente, não se lembrava de como aquele lugar era belo e de como despertava nela um encantamento quase infantil.
Respirou fundo, enchendo os pulmões com o ar leve e doce daquele plano. Sorriu. Sentia-se guiada, finalmente. Das outras vezes em que chegara a Ekhaya, fora tudo um tanto caótico, quase por acaso. Mas, agora, sob a orientação da Aenora, a bússola dos sonhos, sua presença em Ekhaya não era mais um acidente,era uma escolha. Um retorno.
Daquele ponto privilegiado, poderia ir a qualquer lugar. Arcádia estava logo à frente, pulsando magia e possibilidades. A brecha oculta na queda-d’água poderia levá-la a Meru ou até mesmo às profundezas encantadas de Atlantis. Mas, ao ponderar por um instante, sentiu o chamado mais sutil e afetuoso de algo mais íntimo.
Era hora de rever seus amigos e de encontrar sua nova mentora.
Inspirou com intenção e deslizou até a cachoeira, sentindo a gravidade perder o sentido sob seus pés. Quando mergulhou, cada gota parecia tocar sua pele como se conhecesse sua história. A corrente a envolvia como um abraço antigo, e seu coração pulsava em sintonia com as águas.
Subitamente, um rugido poderoso reverberou pelos ares. Era inconfundível.
Helena sorriu, instintivamente. Com um giro fluido, alterou seu curso e alçou voo, posicionando-se diante da imponente criatura. Seu corpo flutuava a poucos metros da besta alada, seus olhos fixos em um olhar que não a julgava, nem a temia. Ao contrário do que Liora sugerira, o Mansamara não reagiu com desconfiança nem adotou uma postura ofensiva.
Quase gargalhando de alegria, Helena começou a voar ao redor da criatura. O Mansamara acompanhava cada movimento com precisão quase lúdica. Em instantes, ambas dançavam nos céus como se aquele balé aéreo estivesse coreografado desde o princípio dos tempos. Então, num gesto sutil, a criatura assumiu a liderança, conduzindo Helena por trilhas celestes até que a ilha flutuante desapareceu na distância.
Voavam agora sobre a floresta de Thalwynn.
A visão era arrebatadora. A copa das árvores se agitava como um mar de folhas douradas e verdes, tocadas por ventos sonhadores. Na última vez que esteve ali, o luto pela avó obscurecia tudo ao redor. Mas agora, a floresta pulsava com uma energia quase sagrada. Uma sinfonia silenciosa de vida. E Helena sentia, com uma clareza profunda, que também pulsava junto com ela.
Movida por um impulso terno, decidiu pousar junto a um lago escondido entre as raízes centenárias. Caminhou lentamente entre arbustos e troncos cobertos de musgo, e ao passar a mão pelas folhas, sentiu que algo respondia. Não era imaginação. As árvores, as flores, até mesmo o solo. Tudo parecia reconhecê-la. Não com palavras, mas com vibrações suaves, com toques sutis, como um animal que fareja um velho amigo.
A floresta a acolhia.
Após longos minutos contemplando a magia presente em Thalwynn, a jovem Andarilha sorriu enquanto sente o vento acariciar a sua pele e logo em seguida, alça voo até que a floresta se torne uma tapeçaria de cores vivas abaixo dela.
Aquele momento foi o suficiente para que ela mudasse de ideia e optou em seguir em direção a Shambhala acreditando que a recepção de Nazu seria mais calorosa que as dos demais Primordiais, respirou fundo como se aquele gesto a conectasse com a essência da criação e acenando para a criatura alada que ainda estava a poucos metros de distância deu meia volta e voou em direção ao leste com toda a velocidade que conseguia impor.
Ao deixar a floresta de Thalwynn para trás, Helena se lembrou da sua última visita a Turiya e como aquele momento a mudou. Ainda sentia falta da sua avó, mas ali, nos Reinos Oníricos, era como se ela ainda estivesse viva de alguma forma. Era possível sentir, mas não explicar. Talvez alguém entre os Primordiais saberia, mas no momento havia coisas mais importantes para serem tratadas.
Assim que alcançou as fronteiras invisíveis que separavam Arcádia de Shambhala, Helena avistou dois grupos que aparentavam estar de lados opostos de alguma coisa, um deles, o menos numeroso era liderado por um ser tão grande quanto Nazu, de pele verde, presas inferiores que saltavam para fora da sua boca e um cabelo prateado que descia pelos seus ombros em duas longas tranças.
Se opondo a ele e ao seu grupo visivelmente mais pacíficos liderados por nada mais que Airya, a guardiã de Arcádia. Sem pensar duas vezes, Helena fez um meio círculo no céu e pousou a alguns metros da aglomeração.
— De todas as criaturas que poderiam aparecer, você é a que eu não imaginava — A Primordial fala ao perceber a aproximação de Helena — O que te traz de volta menina?
— O que está acontecendo? — Perguntou a garota ignorando o questionamento de Airya.
— Ei você! — gritou o gigante verde dando a impressão que o chão vibrava sob o peso de sua voz — seu nome é Helena? — Ele direcionou o seu olhar para a guardiã atraindo o silêncio momentâneo dos presentes — Airya, não vai nos apresentar?
— Quem é você? — Indagou a jovem Andarilha tentando descobrir por si o que havia causado aquele tumulto.
— Perdão pela minha falta de educação — Ele curvou ligeiramente a cabeça — eu me chamo Farouk, guardião da cidade de
Aquela informação pegou Helena de surpresa que procurou o olhar de Airya que assentiu com a cabeça e tomou a palavra para si.
— Farouk e os outros abandonaram Shambhala décadas atrás e forjaram um pequeno vilarejo entre a cidade de Nazu e os territórios de Arcádia e agora eles querem que os Primordiais a reconheçam como uma das cidades no lugar de Zephyria ou Sundara.
— Você só se esqueceu de mencionar os motivos que levaram a essa decisão guardiã — Interrompeu Farouk
Helena ainda observava em silêncio, mas em seu íntimo queria agir, mas não fazia ideia de como. Quando menos percebeu, já estava falando — Eu só ainda não entendi o problema disso — Confessou.
— Viu, Airya — respondeu o dissidente com um sorriso malicioso tomando forma em seu rosto. — Qual é o problema? Helena, certo? Eu e os meus irmãos acreditamos que os Primordiais precisam de ajuda para governar esse mundo e quem mais deveria assumir esse papel senão os seus mais antigos entre nós?
— Farouk, chega! — Falou Airya com uma autoridade que Helena nunca havia visto — Essa conversa não vai evoluir dessa forma. Me dê alguns dias que irei me reunir com os meus irmãos e podemos falar com mais calma e de forma racional. O que acha?
Farouk sabia que estava em desvantagem tanto numérica quanto em poder. A Primordial poderia ser devastadora e ele não queria instigá-la. — combinado! Espero que não se esqueçam dos seus irmãos menores.
—Não irei. — A Primordial olhou para Helena e sorriu visivelmente aliviada com a tensão entre os grupos dissipada — Espero que não esteja cansada. A capital de Shambhala está a poucos quilômetros de onde estamos e acho que seria uma boa ideia caminharmos um pouco.
Um pouco frustrada com a sugestão da guardiã, a neta de Isabela a encara tentando decifrar se ela estava falando sério e quase no mesmo instante a Primordial sorri e começa a andar. — O que está esperando? — A adolescente respira fundo e caminha um pouco mais rápido até alcançar Airya.
— Por que não podemos simplesmente ir voando? Eu passo a minha vida inteira no meu mundo correndo ou andando. Seria bom variar de vez em quando.
— Imagino que esteja ansiosa para fazer muitas coisas — A guardiã olha de soslaio da Helena esboçando um sorriso — mas essa caminhada vai nos dar tempo para conversar a respeito do que acabou de ver.
— Esse Farouk? Da onde ele apareceu? Porque eu não ouvi falar dele das últimas vezes que estive aqui — Perguntou intrigada. Ansiosa por uma resposta.
— Você precisa admitir que as suas primeiras vindas até Ekhaya não foram tranquilas. Existe muita coisa que você irá aprender daqui pra frente e que vai te ajudar a lidar com os habitantes do meu mundo.
Helena olhou intrigada desejando ler pensamentos. Ela odiava rodeios e mesmo assim, parecia que ela era um ímã para pessoas que gostavam de ser assim.
— Como você sabe, diferente do seu mundo onde existem centenas de líderes e níveis de hierarquia e estilos de governo, em Ekhaya há uma espécie de oligarquia onde quem rege somos nós, os Primordiais. Quando fomos escolhidos por Nammu, alguns entre nós tentaram contestar, mas o movimento não ganhou força porque graças ao Grande Expurgo, a maioria dos habitantes estava a nosso favor.
— Mesmo com as catástrofes que aconteceram? Indagou Helena.
— Sim. Afinal, se não fosse o sacrifício de alguns de nós, provavelmente não haveria mundo. — Airya suspirou e então voltou a falar — Acontece que com a descoberta da traição de Borku e Niara, começaram a surgir entre nós, aqueles que não acreditavam mais no nosso governo e temendo o pior decidiram deixar as cidades estados e começar a criar suas próprias comunidades com os seus próprios líderes.
— Farouk — Concluiu Helena — Mas qual é o problema nisso?
— Farouk é um deles. Na verdade, o grupo que ele lidera é o mais relevante e tem atraído a atenção de muitas pessoas.
— Ainda não entendi qual é o problema nisso. — Insistiu Helena — Não seria melhor se vocês dividissem a responsabilidade com outras pessoas?
— É mais complexo do que você consegue entender agora, mas em breve teremos tempo para falar a respeito.
Depois de algum tempo caminhando, a paisagem que até então era predominante de árvores e trilhas de terra batida foi substituída por pastos e uma e um pequeno vilarejo. Helena olhava com visível curiosidade para os moradores locais que devolviam o mesmo olhar curioso para a Andarilha. — Não lembro de ter avistado essa vila nas minhas últimas visitas — Disse por fim.
— É porque elas não existiam — respondeu Airya — Esse é um outro grupo que decidiu sair de uma das cidades Primordiais com medo de um segundo evento como o Grande Expurgo
— E o que você e os demais Primordiais pensam a respeito?
Airya suspirou fundo e parou de caminhar enquanto Helena fazia o mesmo para ouvi-la. — Honestamente, eu não vejo problema nisso. O nosso mundo é tão vasto e belo e não deveríamos nos limitar a viver apenas nas grandes cidades, mas da forma que esse movimento está acontecendo me preocupa. Não gosto como Farouk impõe seu ponto de vista aos demais, mas vamos mudar de assunto e deixar temas mais conturbados após chegarmos em Shambhala.
As duas caminharam em silêncio, cada uma absorta em seus próprios pensamentos. Enquanto Airya parecia ponderar sobre algum assunto importante, Helena por sua vez repassava o episódio da praia do vento em sua mente sabendo que seria questionada a respeito quando chegasse o momento de se encontrar com os outros Primordiais. Enquanto atravessavam uma das vilas dissidentes, muitos dos seus moradores acenavam como se a conhecessem e outros fingiam que ela não estava lá. — Como pode pessoas tão simpáticas conviverem com pessoas tão mal humoradas ? — Questionou ela em voz alta.
— Para o bem ou para o mal, muitos aqui sabem da sua história sobre a Ilha de Ankun e a sua luta contra Borko. Alguns veem isso como bom presságio e outros não. Os reais motivos? Difícil saber a não ser que você decida perguntar.
— Quem sabe eu faça isso mesmo — retrucou a jovem. Ao perceber que a guardiã não estava muito interessada em prolongar qualquer assunto que dizia respeito ao seu mundo, ela mudou de assunto como sugerido anteriormente. Ela contou sobre o fim do período letivo e como conseguiu conquistar o segundo lugar na competição estadual de natação. Falou do distanciamento forçado que teve que impor entre ela e seu amigo Gustavo quando este declarou que estava apaixonado por ela.
A conversa seguiu de forma leve e natural com Airya perguntando sobre o entretenimento e falando o quanto amava assistir às peças de teatro. — Você não gosta de cinema? — questionou Helena.
— Não faço ideia do que se trata — A Primordial então explicou como não gostava de sair do seu mundo e que só emergia no nosso mundo quando era fosse extremamente necessário e que a última vez que fez isso havia uma peça de uma tal Agatha Christie chamada A Ratoeira que ela gostava muito e assistiu algumas vezes. Helena, surpresa com a revelação, começou a falar sem parar da televisão e do cinema na esperança de despertar a curiosidade da guardiã. O quase monólogo foi tão incessante que quando se deram conta, já era possível vislumbrar a cidade dourada de Shambhala.
Assim que passaram o portão principal, as duas avistaram Nazu próximo a uma barraca, saboreando um fruto parecido com pitaia, mas de aparência mais suculenta, enquanto conversava com uma mulher de pele avermelhada e olhos dourados. Ela tinha os cabelos rosados presos em uma trança e chifres curvados que brilhavam sob o sol. Vestia linho simples e apoiava-se em um cajado, sorrindo com a naturalidade de quem parecia pertencer àquele lugar. Ao lado, um homem de pele escura e expressão atenta observava a conversa. Os cabelos trançados, adornados com fios e pequenas peças, revelavam cuidado e tradição. Usava tecidos em tons de azul e marrom, marcados por padrões delicados, e o olhar firme de quem pesa cada palavra antes de dizê-la.
Ambos olharam na direção de Helena e Airya assim que o Primordial as viu e acenou as convidando para se juntar ao grupo.
Ansiosa para descobrir de quem se tratava, Helena acelerou o passo, deixando a guardiã alguns metros atrás. Queria saber se eram mais dissidentes ou apenas conhecidos do guardião. Sorriu ao ver a expressão de felicidade dele, mas antes que pudesse alcançá-lo, seu caminho foi bloqueado.
Capítulo 7
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